“Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, esqueça-se a minha mão direita da sua destreza.” Salmos
A primeira imagem da Bósnia, para além do verde que predomina a paisagem, foi uma ruína: uma casa queimada pela guerra. Amanhecia e estava nevoeiro. No autocarro onde eu viajava, já desde a Alemanha, ainda sem dormir, seguia também o Rasim, que me disse: “as casas estão aqui, temos de as ver.”
Rasim é muçulmano e nasceu em Escópia, na Macedónia, mas mudou-se para a Bósnia há vários anos. Senti na forma de ele falar do seu país, da Bósnia, da sua história e cultura, um certo orgulho misturado de mágoa. Rasim sentava-se exactamente atrás de mim. Durante a viagem quase toda, conversámos, em inglês, língua que ele domina depois de tantas viagens e trabalhos fora. Pai de três filhas, Rasim trabalha na reparação de interiores e divide o seu tempo entre Sarajevo e Estocolmo. Eu estava cheio de sono mas escutei os seus relatos com atenção. Falou-me de como os bósnios souberam resistir aos sérvios. “Somos boa gente, mas se se metem connosco somos malucos.” Contou-me também como Sarajevo mistura várias fés diferentes de uma forma, segundo ele, harmoniosa: muçulmanos católicos, cristãos ortodoxos e judeus. “Vais-te surpreender, mas não me ouças demasiado”, repetiu ele muitas vezes.
A frase “não me ouças demasiado” foi quase como que abusada por Rasim. E repetiu-a também quando me falou da guerra e criticou os sérvios: “esta é a minha versão da história, e é a verdade, mas não me ouças demasiado. Vê e cria a tua própria opinião.”
Apesar do sono, estava interessado em ouvi-lo. Dava-me explicações dos locais por onde passávamos com precisão e ligava-os com experiências do passado e com a guerra. “Aqui era território controlado pelos sérvios”, “aqui resistimos”, “somos um povo que nunca foi o primeiro a atacar”. A certo momento passámos no centro de uma vila onde vi lado a lado um cemitério ortodoxo e um cemitério muçulmano, como túmulos de dois irmãos enterrados juntos. “Isto é algo que não vês em muitos locais”, disse Rasim. Na paisagem surgiam vilas, casas castanhas, igrejas, mesquitas, com suas cruzes ou minaretes orgulhosamente exibidos, numa paisagem europeia pouco comum.
Passámos por Zenica Bilimopolge e Rasim contou-me que nessa cidade existe um estádio de futebol mais pequeno do que o estádio nacional em Sarajevo. “Mas é no pequeno que fazemos alguns jogos importantes, precisamente por ser pequeno”. Como é pequeno, contava, os adeptos estão mais próximos do campo e dos jogadores e podem tanto apoiar a sua equipa de forma mais fervorosa, como importunar a equipa adversária mais facilmente. Essa proximidade, à qual os bósnios pareciam dar mais importância, podia ser um exemplo dessa força e resistência do povo bósnio de que Rasim me falou. Depois, acerca da guerra, ainda me disse: “não fales da guerra com as pessoas. Muita gente perdeu assim as suas famílias”.
“Chegam aqui, destroem as nossas casas, matam-nos e dizem que é a terra deles: é frustrante”. Neste país as marcas da guerra ainda não foram escondidas, e mesmo que as escondam das fachadas dos edifícios elas ficam. Existe essa dualidade de sentimentos nos povos que passaram por uma guerra relativamente recente: por um lado quer-se esquecer os horrores vividos, mas por outro quer-se recordar desses mesmos horrores. Creio que a fase de esquecimento e recordação da guerra recente pode ser realizada por duas gerações diferentes. Pelo menos foi assim na Alemanha, depois da Segunda Guerra Mundial: a geração que viu a guerra quis fazer um novo país, escondendo ao máximo os vestígios da guerra e a geração depois dessa, nascida no pós-guerra, tentou criar formas de não esquecer a guerra. Quem sofre quer, de certa forma, esquecer, embora a impossibilidade desse esquecimento faça ainda aumentar mais a necessidade de o recordar.
Na Bósnia ainda se mantém uma imagem de guerra, nítida e viva, mesmo em Sarajevo, onde junto de um prédio moderno restam ruínas das bombas ou prédios com buracos de balas nas paredes. Esta memória viva da guerra parece-me quase uma fantasia, uma realidade tão inócua, próxima e ao mesmo tempo perdida na infinidade morta da história, que me sinto realmente num local de uma aura distinta de qualquer outro país europeu. Na Bósnia não me sinto nem no início, nem no final do tempo e da geografia, mas no meio.
Rasim foi o meu cartão de entrada na Bósnia e depois, deitado na minha cama na pousada, no centro de Sarajevo, esperando a chegada do António, amigo e futuro companheiro de viagem, e depois de ter finalmente dormido um pouco, decidi começar a escrever o diário desta curta visita aos Balcãs.
JG